quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O SENSOR HEREDITÁRIO (F.F.)




Enquanto o pavão corria cansado
No mastro, a bandeira fincada surgia
Trazendo planícies pro seu balançado
Comendo delícias, pra tua alegria

Jogando alfinetes no corpo docente
Dois pontos perdidos no meio da frase
Comiam um grande pedaço de pão
Titubeando e caindo da base

O sétimo estrago no papel alumínio
Amassado e roído por traças hostis
A praia lotada, faz do feriado
A casa da areia do povo feliz

Imagem lombada no pôster colado
No alto da porta do seu calhambeque
Me deixa intrigado o nosso telhado
No calor sinistro, utiliza-se o leque

Grão de feijão na bacia do pano
Enrugados por seu ventre traquinas
Quatro dedos não rasgam envelope
A barra de ferro rachou as esquinas

Barriga de grávida tornou-se souvenir
Pro gringo galego gozado
Que, enturmado com o bando de fanfarrões
Visita o rochedo abarrotado

E nisso, vai-se e vem-se, e vence
Vem si e dó se vai
Doído e deitado no berço eloqüente
O doido varrido pela enchente


Frederico Formiga

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

CIPÓ (S.L.)


(Para Myra Morena)
E os dias foram de risos fáceis, afetos levíssimos e marcantes, poucas horas de sono e nenhuma insônia ou mau humor. A liberdade inventada conferindo tranquilidade ao rosto. Horas passando com a calma que torna inesquecíveis os melhores momentos da vida.
A realidade, porém, não se apresenta como no sonho. O caminho é diferente, pesado, cinza-chumbo - céu chuvoso que pesa sobre os ombros e olhos.
Nos dias que se seguiram aos melhores, tudo como antes: pés que pisam pés, indignações multiplicadas, faces sisudas, quando não tristes. Beijos, ah, nem há tempo...
Roupas leves e molhadas de água doce, e tratada a cloro, dão lugar ao peso dos compromissos, ao desconforto do salto alto, ao aperto das gravatas, ao incômodo das pastas, à estupidez das conduções, à precisão dos horários, às reclamações pelos atrasos e afins.
A alegria, natural ou engarrafada, dá lugar às ressacas morais e diárias, ao encontro com os mendigos que, em hordas, ocupam as ruas, as praças, os viadutos, afirmando de modo patente nossa incompetência de gerir a vida, a sociedade, a política. (Veja, até os assuntos são pujantes...)
E eram peixes, pássaros e toda sorte de vida natural o que ocupava os espaços que meus olhos alcançavam. Árvores e muito ar puro. Madrugadas estonteantes, olhos em brilho de estrela.
Definitivamente, não é feliz quem vive apenas o real da vida. O real é pouco, falho, constrangedor, seco. O real não permite o bailado a dois, ou na companhia da lua.
O real só aceita dia e noite, convencionais, tomando a madrugada apenas para o sono - este por vezes acompanhado de relaxantes e ansiolíticos.
Há tanta vida, tanto mais além do real, do útil, do horário comercial. Percebo, só agora, que o sonho me prendeu naquele lado do tempo em que a vida seguia sem pressa.
Vejo muito mais com os olhos fechados.


Susanna Lima

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

BAÚ (D.R.)



Olhei as nuvens brancas do céu e vi como elas brincavam de desenhar lembranças. Lembrei-me de quando as nuvens eram negras e criavam tempestades. Lembrei de boa parte disso aqui.
Sim! Eu estive presente durante boa parte disso aqui. Estou próxima à origem da vida. Quanto tempo faz? Não importa muito. O que importa de verdade é o que me tornei com os novos relâmpagos de recomeço. O que importa é o que vocês podem vir a se tornar, se prestarem atenção na neve em meus telhados. Telhados que comportam um sótão aparentemente distante.
Cada caixa empoeirada guarda um segredo, que é compartilhado com aqueles que notam o carinho e a riqueza em meio às cataratas de meus olhares. A riqueza de uma inocência desmedida, capaz de criar monstros de palpitações. Capaz de confundir risos com rios. Capaz de ser belo em meio a tragédias. Capaz de simplesmente ser capaz.
Ah... Ainda sinto o cheirinho da chuva. Ainda ouço o barulho das crianças fazendo algazarras em frente a minha varanda. Se eu fechar bem os olhos, eu consigo ver toda a insegurança de um jovem adulto mergulhado em porquês e incertezas. Mesmo com tantas indagações, aquela criança de calças compridas me procurava com olhares afobados; perdidos. Só não mais perdido do que ele próprio.
E me encontrava; e se perdia ainda mais.
A andorinha que não conhece a rota para o sul se guia por outra que nem sabia da existência do verão.
Desventuras desvendadas no susto. Gaviões com fome de andorinhas sem rumo. Andorinhas controlando a ninhada.
Muitas dúvidas...
Hoje eu acho graça. Aprendemos juntos o caminho para o sul. Levo em minha bagagem as canções de passarinhos que você me ensinou.
Suei muito, suamos muito. Pegamos muita chuva antes de vermos o sol.
Vivemos a simplicidade de um mundo diferente. As épocas passam. Histórias se multiplicam e se renovam, mas certas coisas nunca mudam. Os olhares apaixonados são os mesmos. Os suspiros desperdiçados, a respiração ofegante, a tremedeira no corpo, o arrepio sem lógica.
E o sol continua queimando, mesmo estando de partida.
Agora se põe deixando para trás as marcas de queimaduras.
Hoje a profecia da Esfinge se concretiza.
A noite chegou e adquiri minha terceira pata.
O relógio se aproxima da meia noite.
Antes de dormir sonho com novas manhãs.
Deito-me e aguardo as badaladas.


Danilo Rangel

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

POLIFEMO (A.V.)



Deitado no fundo da grande caverna,
Vez por outra eu rolava para um lado e rolava para o outro, de onde uma luz estranha insistia em me ensinar coisas que nunca tinha aprendido.
Eu levantei, visto que nos pés nunca foram postas correntes, mas lá eu as queria existir.
Foi difícil sair do chão e mais ainda pôr-me de pé, coisa que nunca fizera antes, e ainda pior foi aquele estranho momento que uma das pernas movimentou-se para frente no primeiro passo e em seguida outros vieram.
Aquela luz ia crescendo, crescendo, até que, à boca da caverna, um sentimento dicotômico desafiou-me.
Quando percebi meu pé direito estava mais fora que dentro... na frente um calor, atrás um frio. Eu, então, percebi algumas verdades sobre mim que nunca notara antes: as mãos ágeis, os pés vivos, estava nu, e no mundo fora da caverna não existia nada.
Aliás, não nada, havia algo longe que não sei o nome, mas aproximei-me, ainda que lentamente, e ao rés do chão olhei-o, furtivamente. Era plano e movia-se compassadamente com brilhos e sons. Nesse instante sombrio notei que refletia desta superfície o rosto de alguém que eu nunca vira.
Levantei a fronte, olhei um lado, olhei o outro, para cima também e novamente para baixo. Ele me olhava da mesma forma que eu. Já não sabia quem imitava quem.
Abaixei-me para perto dele e toquei aquela superfície anímica que meu olho nunca vira antes. A imagem já distorcida turvou-se entre os meus dedos e o ser dentro daquele lugar não sabia se ficava, se fugia... não sabia se parava ou se movia. Fui para trás sob espanto e, caindo sobre meus joelhos, franzi a testa descontente. Pus as mãos no chão e voltei a olhar para ele e notei que dentro daquela imagem perturbada e geminiana não havia nada de novo, efetivamente. Era eu refletido numa superfície estranha às minhas mãos. Era eu e não me conhecia.
Não desejei, no entanto, desbravar nada mais daquele novo mundo. Olhei para trás e lá a caverna estava, para onde meus pés insistiram em voltar. Adentrei a escuridão lentamente. Relembrei aquele chão com os pés e a minha monoblepsia paradoxal e deliberada.
Este meu olhar unilateral faz-me depreender mais energia que desejo gastar, a fim de ver.
Deitei-me no chão com as costas viradas à porta, abri bem o olho e na escuridão monocromática voltei a sentir a paz de quem nada sabe e nada vê.


André Vidal