(Para Myra Morena)
E os dias foram de risos fáceis, afetos levíssimos e marcantes, poucas horas de sono e nenhuma insônia ou mau humor. A liberdade inventada conferindo tranquilidade ao rosto. Horas passando com a calma que torna inesquecíveis os melhores momentos da vida.
A realidade, porém, não se apresenta como no sonho. O caminho é diferente, pesado, cinza-chumbo - céu chuvoso que pesa sobre os ombros e olhos.
Nos dias que se seguiram aos melhores, tudo como antes: pés que pisam pés, indignações multiplicadas, faces sisudas, quando não tristes. Beijos, ah, nem há tempo...
Roupas leves e molhadas de água doce, e tratada a cloro, dão lugar ao peso dos compromissos, ao desconforto do salto alto, ao aperto das gravatas, ao incômodo das pastas, à estupidez das conduções, à precisão dos horários, às reclamações pelos atrasos e afins.
A alegria, natural ou engarrafada, dá lugar às ressacas morais e diárias, ao encontro com os mendigos que, em hordas, ocupam as ruas, as praças, os viadutos, afirmando de modo patente nossa incompetência de gerir a vida, a sociedade, a política. (Veja, até os assuntos são pujantes...)
E eram peixes, pássaros e toda sorte de vida natural o que ocupava os espaços que meus olhos alcançavam. Árvores e muito ar puro. Madrugadas estonteantes, olhos em brilho de estrela.
Definitivamente, não é feliz quem vive apenas o real da vida. O real é pouco, falho, constrangedor, seco. O real não permite o bailado a dois, ou na companhia da lua.
O real só aceita dia e noite, convencionais, tomando a madrugada apenas para o sono - este por vezes acompanhado de relaxantes e ansiolíticos.
Há tanta vida, tanto mais além do real, do útil, do horário comercial. Percebo, só agora, que o sonho me prendeu naquele lado do tempo em que a vida seguia sem pressa.
Vejo muito mais com os olhos fechados.
Susanna Lima
"E eram peixes, pássaros e toda sorte de vida natural o que ocupava os espaços que meus olhos alcançavam. Árvores e muito ar puro. Madrugadas estonteantes, olhos em brilho de estrela."
ResponderExcluirQue doce!
Momentos assim são rarissimos, é preciso 'saber vivê-los' e, mais do que isso, é preciso saber mantê-los vivos em nós ao voltar para a "cidade".
Não é uma confissão, não sou dada a confissões, mas no meio de meu momento mais "cor-de-grafite", esse texto me fez viajar, ver cores variadas (de olhos fechados). Sentada aqui, em vez de "tempo abafado" (como diria minha avó quando o clima da vida real a sufoca), pude sentir ar fresco entrar nos pulmões, já quase sem forças (eita climazinho pra tirar as forças esse!)
Até o frescor das águas doces pude sentir... como amo água doce!
Pois então, já que é pra comentar e a gentileza de vocês nos faz sentir tão em casa... eis o que o texto foi pra mim desde a primeira leitura:
Cores variadas, ar fresco nos pulmões e alma lavada com água doce!
Susanna Lindeza, incrível!
Parabéns e obrigada (por não sentir sozinha)..
ABRAÇO!
E o sonho é esse "Cipó" no qual nos agarramos para fugir dessa vida de mesmices? É digno demais. Eu gosto desses textos em que os adjetivos têm uma presença muito marcante: "madrugadas estonteantes", "!O caminho é diferente, pesado, cinza-chumbo - céu chuvoso que pesa sobre os ombros e olhos" etc... Porque adjetivação traz justamente esse paradoxo de viver e experimentar em conflito com o esperar e deduzir. Por exemplo: a vida não basta e o sonho, a imaginação, toma lugar de destaque na composição do que somos e do que sentimos, mas por outro lado, não sentimos de fato, porque não experimentamos (não experienciamos), mas precisa? Aparentemente não. Seu texto é lindo e mais do que isso, é um fato sensivelmente comprovado. Sonhar é preciso, sonhar nos mantém,nos sustém... que bom que as pessoas podem ler isso! 7 bilhões de pessoas no mundo hein e eu tenho a honra de conhecer você :D - não acredito em coincidência!
ResponderExcluirGostei bastante. Bem reflexivo, profundo. Bem "tem coisas que o dinheiro não compra". Sei lá, o texto é tão completinho que nem sei o que dizer. Perfeito na ideia e no modo como você a expôs. Parabéns. Quero saber de onde veio a inspiração e se esse lugar a que você se refere como "fuga da realidade" é algo físico mesmo ou uma viagem, um sonho? Beijos
ResponderExcluirSilvinha, minha flor, eu amei seu comentário.. Na verdade, amei saber o que o texto provocou em você. A cada vez que lembro dos momentos que vivi na Serra do Cipó (MG), revivo as sensações que esse texto trouxe a você. Puro encanto!
ResponderExcluirMuito obrigada por prestigiar esse espaço, viu, querida?
Beijos doces!
André, meu amor! Eu sempre agradeço a Deus por ter me dado a oportunidade de conhecer um ser humano como você. Isso é privilégio de poucos, viu? Te amo! (Mas vamos parar com a rasgação de seda! rsrs)
ResponderExcluirEu acredito que o cipó pode, sim, servir como metáfora para o alcance do sonho. Nesse caso, podemos nos mover entre os sonhos dependendo dos cipós em que nos segurarmos, não é?
De fato a "vida real", como chamei no texto, não dá conta de tudo o que vivemos. O tempo que gastamos planejando uma viagem, um passeio, uma festa, seja lá o que for (em termos de algo que nos conceda algum prazer), está dentro do real, mas conjugado com o imaginado, o ainda intangível. Só o sonho pode dar conta dessa experiência antes que ela exista efetivamente. E só a memória da realização do sonho fixa lembranças agradáveis, como as que tenho dessa experiência que gerou o texto.
Na verdade, diria o seguinte: o importante é sonhar!
Beijos!
Fred, primeiro obrigada pelo comentário tão elogioso! rsrs
ResponderExcluirOlha, a inspiração veio de um evento físico mesmo: no feriado de outubro eu fui, convidada pela amiga Myra Morena, a quem eu dediquei o texto, a comemorar seu aniversário com familiares e outros amigos em MG, na Serra do Cipó.
Foram dias ótimos, pessoas incríveis, muita alegria.
Para mim, além disso, foi importante por ter representado a ressignificação do ato de viajar, que anteriormente ligava-se a uma pessoa que não está mais em meu convívio.
Enfim, é isso. ;)
Beijos!
Dani, a descrição de coisas tão pequenas e tão importantes, que não percebemos por pura cegueira conformada e insensível, me fez lembrar Caio Fernando Abreu. Já leu? Se sim, sabe do que estou falando, se não, deveria! Esse dom, essa percepção, essa sensibilidade são muito especiais! Gostei bastante do texto! E tô amando esse blog!!! Beijo pra ti!
ResponderExcluirOlá Laura!
ResponderExcluirMe senti honrada com a comparação a um autor que leio bastante, e gosto em igual medida. Óbvio ululante que não chego aos pés do que ele produziu, mas tenho meus acertos. Esse texto foi um deles.
Obrigada por dedicar seu tempo à leitura dessas palavras.
Beijos, Susanna.
Tenho visitado timidamente seus espaços, seus pensamentos. Às vezes me detenho por lá alguns minutos, e as leituras criam uma bolha no tempo, de efeito terapêutico. Isso ajudar a vencer a pressão diária, o relógio que empurra, a realidade q se impõe como certa (mas não é!)... Tudo assunto pra um dia, outra visita a BH ou uma fugida para o Rio, não é?
ResponderExcluirFlores,
Moacyr
Moacyr!!
ResponderExcluirQue felicidade seu comentário e presença aqui!
Interessante você me dar esse feed-back, porque tento reproduzir, ainda que minimamente, as sensações que tenho, originadas a partir de leituras, reflexões e carinhos recebidos.
Dos meus desejos, quando escrevo, o maior eh transportar os leitores, ainda que por curto espaço de tempo, para um local mais leve, são e aconchegante...
Obrigada novamente!
E aguarde novembro: estarei novamente em BH.
Beijos!
Gostei muito do texto. É um texto gostoso de ler. Me fez viajar para várias cidadezinhas interioranas que tive a oportunidade de conhecer.
ResponderExcluirVocê escolhe muito bem as palvaras que utiliza. logo na segunda frase do texto, me deparei com "A liberdade inventada conferindo tranquilidade ao rosto". Essa frase é tão bonita e ao mesmo tempo um pouco dolorosa. "Liberdae inventada", como se soubessemos que aqueles momentos são contados e infelizmente raros.
Gosto de ver o cenário se montando em minha cabeça: "cinza-chumbo" é uma palavra forte e ajuda na confecção desse cenário.
É verdade: até os assuntos são pujantes!
Ferreira Gular já dizia: "A arte existe porque a vida não basta", ou seja, "o real é pouco".
A frase que mais gostei: "O real não permite o bailado a dois". essa frase me lembra uma música: Valsinha. Sim André, a música é do Chico. rsrsrs. Eu tenho uma esquete que se baseia nessa música. Quem sabe ela não pinta por aqui qualquer dia desses. rs.
Parabéns! Adorei!
Oi Dan!
ResponderExcluirObrigada pelos elogios todos. Esse foi um dos textos atuais que mais gostei de escrever. Tanto pelas imagens que pude exprimir através das melhores palavras que encontrei no momento, quanto pelo reviver de experiências que me tomavam enquanto eu o redigia.
A cada dia que passa tenho mais certeza - e só de ter mais certeza de algo, a posição torna-se desconfortável - de que o real não é suficiente, ainda que se imponha como tal.
Desejo muito que saibamos escapar disso a tempo!
Beijos!