quinta-feira, 11 de outubro de 2012

BAÚ (D.R.)



Olhei as nuvens brancas do céu e vi como elas brincavam de desenhar lembranças. Lembrei-me de quando as nuvens eram negras e criavam tempestades. Lembrei de boa parte disso aqui.
Sim! Eu estive presente durante boa parte disso aqui. Estou próxima à origem da vida. Quanto tempo faz? Não importa muito. O que importa de verdade é o que me tornei com os novos relâmpagos de recomeço. O que importa é o que vocês podem vir a se tornar, se prestarem atenção na neve em meus telhados. Telhados que comportam um sótão aparentemente distante.
Cada caixa empoeirada guarda um segredo, que é compartilhado com aqueles que notam o carinho e a riqueza em meio às cataratas de meus olhares. A riqueza de uma inocência desmedida, capaz de criar monstros de palpitações. Capaz de confundir risos com rios. Capaz de ser belo em meio a tragédias. Capaz de simplesmente ser capaz.
Ah... Ainda sinto o cheirinho da chuva. Ainda ouço o barulho das crianças fazendo algazarras em frente a minha varanda. Se eu fechar bem os olhos, eu consigo ver toda a insegurança de um jovem adulto mergulhado em porquês e incertezas. Mesmo com tantas indagações, aquela criança de calças compridas me procurava com olhares afobados; perdidos. Só não mais perdido do que ele próprio.
E me encontrava; e se perdia ainda mais.
A andorinha que não conhece a rota para o sul se guia por outra que nem sabia da existência do verão.
Desventuras desvendadas no susto. Gaviões com fome de andorinhas sem rumo. Andorinhas controlando a ninhada.
Muitas dúvidas...
Hoje eu acho graça. Aprendemos juntos o caminho para o sul. Levo em minha bagagem as canções de passarinhos que você me ensinou.
Suei muito, suamos muito. Pegamos muita chuva antes de vermos o sol.
Vivemos a simplicidade de um mundo diferente. As épocas passam. Histórias se multiplicam e se renovam, mas certas coisas nunca mudam. Os olhares apaixonados são os mesmos. Os suspiros desperdiçados, a respiração ofegante, a tremedeira no corpo, o arrepio sem lógica.
E o sol continua queimando, mesmo estando de partida.
Agora se põe deixando para trás as marcas de queimaduras.
Hoje a profecia da Esfinge se concretiza.
A noite chegou e adquiri minha terceira pata.
O relógio se aproxima da meia noite.
Antes de dormir sonho com novas manhãs.
Deito-me e aguardo as badaladas.


Danilo Rangel

17 comentários:

  1. Parabéns Dan! Texto lindo e leve. Adorei a delicadeza que conseguiu dar ao tema.
    Continue escrevendo. Sempre!!
    Bjo :)

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    1. Obrigado! As vezes fico imaginando que exagero nas metáforas. rsrs Mas acho que a ideia do texto pedia isso. É uma mistura de lembranças antigas, imaginação infantil, uma pitada de devaneios (causado pela idade)... Tudo isso com um ar de "contador de história" que muitos senhores gostam de demonstrar. Quem nunca ouviu um(a) senhor(a) falando assim:
      - Na minha época...
      ou então
      - Quando eu era mais jovem...
      ou ainda (eu já ouvi isso de uma senhora na rua)
      - Eu sou muito velha, meu filho. Minha idade não importa!

      E de fato, se prestarmos atenção em suas histórias (nas caixas empoeiradas do sótão), podemos aprender MUITO. "A neve nos telhados" (os cabelos brancos) mostram que viveram muito. E suas experiências nos ensinarão!

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  2. Um texto sensível e doce, como a doçura de uma senhora sentada no sofá, com um olhar perdido. Você inspirou-se em alguém? Alguém de perto? Alguém que se senta no sofá da tua casa e liberta-se desse mundo olhando para dentro de si com esse olhar descrito no texto?
    Após ler esse texto eu precisei ver o video, no youtube, da poesia de Drummond, "E agora, José?". A quantidade de metáforas num texto e no outro são paralelos, ou seja, falar de algo que se deseja pode, sim, ser através de metáforas. Ninguém precisa entregar seus tesouros com um mapa de linha reta, com 50 passos a frente e só. Um exemplo dessa metáfora da velhice com o texto está em "na neve em meus telhados", que representam a cabeleira branca de quem viveu muitos anos de vida. Nenhuma outra cena, aqui, poderia ser tão gentil à velhice quanto o inverno. Não é à toa que um escritor, sensível à vida, elabora uma digressão notadamente lúcida como esta: de que a velhice, tendo passado os anos na primavera e verão da vida, chega a um outono maduro e a um inverno, a um frio e uma tranquilidade. E mais ainda, reconhece que "o sol continua queimando, mesmo estando de partida".

    Um texto precisa, ainda que por si só, desvendar suas metáforas e deixar, mesmo que muito aos poucos, escorregar sentidos e alusões. Um texto poético não precisa deixar certezas nem servir de respostas únicas às questões da existência. Embora essa nulidade de serviços - ser desvendável por si só e não ser mentor da verdade - o texto poético alimenta a vida.

    Preciso considerar algo importante. Numa concordância nominal na frase "Estou próxima à origem da vida." Em "próxima" o leitor depreende a concordância em gênero e número feminino e singular. Dessa forma, nota-se um eu-lírico feminino. O relato é de uma mulher (ok?). Eu me lembro de alguém de quem você gosta muito: Chico Buarque. Este compositor é um dos homens que mais sabe ler a alma feminina e escreve suas canções como se fosse uma mulher, como se sentisse dentro de si como a mulher sente. Essa é uma sensibilidade incrível. É notável, e eu adorei!

    Por hora, o que dizer do .gif? Um abuso teu essa imagem, Danilo! kkkkkkkkk
    Como escolher dentre tantas possibilidades uma imagem semi-estática tão eficiente para traduzir o texto e a melancolia da velhice? A chuva pela janela, o cômodo desarrumado, tantas coisas amontoadas, tantas coisas e uma aparente falta de tempo para arrumar tudo, apenas sentar-se na cama e deitar... não poderia ser melhor. Você é um abusado! Um .gif é uma afronta da qual eu não poderei curar-me sem uma vingança doce. Espere, tu! Não sei se somos especiais, mas sei que a gente carrega no peito corações bem diferentes daqueles que batem nas multidões. Esse blog não existe por acaso. Parabéns pelo texto...

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  3. Nossa! Fiquei emocionado! Como Susanna já disse, eu adoro implicar com você. Fato! rs Mas eu sou um fã também (não foi por acaso que escolhi vocês três para participar junto comigo dessa "aventura"). Admiro seus textos e o modo carinhoso como você está sempre disposto a analisar qualquer texto. Por isso sempre que o encontro você tem algo novo a ensinar. Obrigado!

    Voltando ao texto:
    Quando eu penso em escrever algo mais sensível (ou mlehor, com um personagem sensível), eu sempre penso em uma mulher. As mulher são muito melhores nesse aspecto. Elas conseguem ter uma visão mais ampla da situação e fazer uma analise dos fatos de maneira mais poética. Elas não têm medo de dizer que erraram em determinado momento, ou que se arrependem de uma passagem de suas vidas. Isso é muito bonito e nós (homens) deveriamos aprender com isso.

    A ideia desse texto surgiu durante uma disciplina da faculdade, onde a turma toda fez uma grande matéria (para TV) falando do romance na década de 60 (ou 50, não lembro precisamente). Deveriamos mostrar como as pessoas dessa época namoravam, como elas se aproximavam daqueles que despertavam interesse nelas. Fizemos entrevistas com alguns senhores e tal.
    Eu tive que fazer um texto para "abrir" a matéria. Fiz uns cinco e depois notei que eles poderiam se completar. Daí surgiu o BAÚ.

    Essa questão, de romance na década de 60 é muito interessante, pois na época não havia uma conversa franca entre pais e filhos, então tudo era mais misterioso, mais surpreendente. Esse "relato" também tem esse lado bonito, onde uma senhora (que não teve ajuda dos pais. Que aprendeu tudo na marra, no susto) se sisponibiliza a falar de suas experiências com os mais jovens. Ela passou por várias dificuldades e está querendo transmitir suas experiências, como uma forma de ensinar, de guiar os mais novos em suas jornadas.

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  4. Muito bom o texto! Tá de parabéns! Me fez lembrar de forma leve a minha infância. Esse texto transmite, ao mesmo tempo, a beleza de toda uma vida e a beleza da partida. Obrigada.

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    1. Obrigado! Que bom que gostou. É bom saber que o texto fez você lembrar da sua infância. Isso é uma das coisas mais incríveis que um trabalho "artístico" pode fazer. O texto atingiu o objetivo dele! rs. Participe quando quiser! Toda quinta-feira à noite entra um texto novo aqui!

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  5. Nossa, que isso!! Altas criticas profundas e elaboradas aqui! Eu faço odonto, não sou tão boa assim. Só leio e sinto, não analiso ok? hsuhsush
    Fui a unica que não imaginei uma pessoa física narrando o texto? É tão leve que li como se fosse uma brisa passando por várias vidas e relatando os momentos. Quase como se a experiencia de vida pudesse se materializar no vento e sussurrar pra você o texto.
    E, não. Eu não uso drogas. Mas acho muito que meu cérebro é afetado.
    Enfim... bom texto!! Continue escrevendo!!
    Beijos e sorte q nunca é muito ;)

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    1. Nossa! Você começa dizendo que não analisa os textos e depois vem com um ponto de vista incrível! rsrsrs Quando li seu comentário, e o que o texto te transmitiu, voltei a ele e o li novamente. Adorei! Adorei a forma como você entendeu o texto, o que ele te passou: "li como se fosse uma brisa passando por várias vidas e relatando os momentos". Em um trabalho artístico não existe certo ou errado. O que importa é o que a obra te passa: o que você sente ao ler um texto, ver um quadro, uma peça de teatro, enfim... É como se você fosse a uma exposição de artes plásticas contemporânea... Alguns quadros não passam de um monte de rabiscos para certas pessoas, mas esse mesmo quadro é vendido por milhões para um cidadão, que de algum modo ficou encantado com aquilo ali. Será que ele conseguiu capctar exatamente o que o pintor pretendia com a obra? Acho que não. Mas NÃO IMPORTA! Não importa mesmo! O que importa é que aquele quadro mexeu com o espectador. Ou seja, ela atingiu o objetivo dela! É muito bom ver um ponto de vista diferente assim! Este blog visa criar debates desse tipo: visões diferentes sobre o mesmo texto. Adorei seu comentário. Obrigado! Toda quinta-feira, às 22h, um novo post é colocado aqui. As portas estão sempre abertas, mas ninguém é obrigado a entrar (rsrs). Mas fique a vontade para ler quando quiser, e se quiser comentar, acrescentará muito ao blog. Bjs.

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  6. Muito bom, Danilo.
    É o tipo de texto que não precisa ter fim.
    Você pode continuar e continuar que não cansa.
    Cada frase que se lê pede uma reflexão.
    É um texto para ler várias vezes.
    Daquele que cada vez você perceberá algo diferente.

    Agora, diferente de todos aqui...
    Eu não vi o personagem do texto como uma pessoa.
    Eu imaginei que A CASA fosse o narrador.
    Não sei se essa foi sua intenção.
    Releia o texto e comprove. Faz todo o sentido.

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  7. Sim! Faz todo o sentido! Confesso que não foi a minha intenção (de colocar a casa como narradora), mas pode ser uma boa forma de ver o texto. Eu estava respondendo o comentário anterior, e tive uma grata surpresa ao notar como a NathQ "interpretou" o texto. Me parece muito parecido da forma com que você viu o texto também. Ela (a NathQ) imaginou o texo sendo "sussurrado" pelo vento. E o vento (assim como a casa) está presente ali por várias gerações. Ela acompanhou a vivência de centenas de pessoas. Ela viu mais decepções, alegrias, euforias, frustrações... do que qualquer ser humano. Pessoas nasceram e morreram, mas ambos (o vento e a casa) continuam por aqui.

    De fato, a cada nova leitura, descobrimos novas coisas no texto, principalmente após ler os comentários. rsrs É muito bom ver as possibilidades que esse blog nos permite. Vemos várias analises sobre o mesmo texto. Isso é muito divertido! rs. Adorei a brincadeira!

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  8. Quando vc escreve "neve em meus telhados", dá essa impressão que se refere a casa como narrador.

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    1. Saquei! Isso também pode ser visto como uma metáfora para cabelos brancos. O que representaria uma pessoa idosa, com muitas experiências de vida.

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  9. "Cada caixa empoeirada guarda um segredo, que é compartilhado com aqueles que notam o carinho e a riqueza em meio às cataratas de meus olhares."
    Escritores Ocasionais sempre arrasando! Lindo! Parabéns!
    O mundo precisa ler essas "coisas". Os homens estão perdidos buscando maneiras de "melhorar o mundo"...textos como esse melhoram as pessoas... que o mundo o leia!!!!!!

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