Vez por outra eu rolava para um lado e rolava para o outro, de onde uma luz estranha insistia em me ensinar coisas que nunca tinha aprendido.
Eu levantei, visto que nos pés nunca foram postas correntes, mas lá eu as queria existir.
Foi difícil sair do chão e mais ainda pôr-me de pé, coisa que nunca fizera antes, e ainda pior foi aquele estranho momento que uma das pernas movimentou-se para frente no primeiro passo e em seguida outros vieram.
Aquela luz ia crescendo, crescendo, até que, à boca da caverna, um sentimento dicotômico desafiou-me.
Quando percebi meu pé direito estava mais fora que dentro... na frente um calor, atrás um frio. Eu, então, percebi algumas verdades sobre mim que nunca notara antes: as mãos ágeis, os pés vivos, estava nu, e no mundo fora da caverna não existia nada.
Aliás, não nada, havia algo longe que não sei o nome, mas aproximei-me, ainda que lentamente, e ao rés do chão olhei-o, furtivamente. Era plano e movia-se compassadamente com brilhos e sons. Nesse instante sombrio notei que refletia desta superfície o rosto de alguém que eu nunca vira.
Levantei a fronte, olhei um lado, olhei o outro, para cima também e novamente para baixo. Ele me olhava da mesma forma que eu. Já não sabia quem imitava quem.
Abaixei-me para perto dele e toquei aquela superfície anímica que meu olho nunca vira antes. A imagem já distorcida turvou-se entre os meus dedos e o ser dentro daquele lugar não sabia se ficava, se fugia... não sabia se parava ou se movia. Fui para trás sob espanto e, caindo sobre meus joelhos, franzi a testa descontente. Pus as mãos no chão e voltei a olhar para ele e notei que dentro daquela imagem perturbada e geminiana não havia nada de novo, efetivamente. Era eu refletido numa superfície estranha às minhas mãos. Era eu e não me conhecia.
Não desejei, no entanto, desbravar nada mais daquele novo mundo. Olhei para trás e lá a caverna estava, para onde meus pés insistiram em voltar. Adentrei a escuridão lentamente. Relembrei aquele chão com os pés e a minha monoblepsia paradoxal e deliberada.
Este meu olhar unilateral faz-me depreender mais energia que desejo gastar, a fim de ver.
Deitei-me no chão com as costas viradas à porta, abri bem o olho e na escuridão monocromática voltei a sentir a paz de quem nada sabe e nada vê.
André Vidal
Muito bom. Eu entendi como uma grande metáfora, muito bem elaborada, a respeito da inquietação de saber de certas coisas em contraste com a paz de não sabê-las. Achei bem profundo. Parabéns, André. Mandou muito bem.
ResponderExcluirBoa observação do texto, Frederico. O olho como fonte de absorção do saber e das experiências tem papel fundamental nessa anedota. Polifemo, um gigante ciclope monocular da mitologia grego-latina, tem grande destaque para a falta de conhecimento, não obstante, o personagem-mito é ignorante e tolo. Seria o fato dele ter apenas um olho que causa isso? Dois olhos absorvem mais? Um terceiro olho, como ocorre na mitologia e religião hindu, revalida um conhecimento mais amplo; por isso a quantidade de olhos é significativa? Essas questões são bastante produtivas...
ResponderExcluirIsso aqui é ontologia pura! Um escândalo esse texto. Me fez lembrar o Mito da Caverna, de Platão. Porém há ressignificações valiosíssimas. Essas palavras foram assumindo espaços vazios entre meus pensamentos, e formaram uma espécie de liga para muitas coisas. Encantada... e agradecida! Te amo!
ResponderExcluirDe fato há uma influência e releitura branda do Mito da Caverna. O período Clássico legou muito à História futura, tanto nos esquemas Renascentistas como na reestruturação do pensamento e do homem moderno. Esse texto, Su, nasceu após eu ler "Abrem-se", sabia? O que em "Abrem-se" nota-se claramente, em "Polifemo" só se vislumbra a partir de uma metáfora mítica e mística, como identificou Frederico. Escrever com vocês é a verdadeira Sociedade dos Poetas Mortos para mim. Uma honra indizível!
ExcluirAh, eu não acredito que participei desse processo criativo!?Nossa, muito honrada. Óbvio que o seu traço avançou em muito nas reflexões que propus em meu texto. E como disse em "Abrem-se", somos portas abertas. O que se vê para além delas depende mais dos olhos que, do que da paisagem, posto que as apropriações são pessoais.
ExcluirBeijo.
Duas passagens são, ironicamente, uma só coisa dita de formas bem distintas: "Era eu e não me conhecia" e "Relembrei...a minha monoblepsia paradoxal e deliberada". O complemento que a segunda dá a primeira frase é mais que casual, é um acidente decidido por nós ao longo da vida. Esse olhar fechado, sendo ou não fruto de uma patologia do temperamento, é uma decisão que se acomoda no fundo de um lago como detrito imóvel. Não por acaso, isso que Polifemo vê de longe é um lago, no qual sua imagem refletida, traz para ele a primeira noção de conhecimento. Esta noção de conhecimento que o alimenta pela primeira vez é de si próprio e o resultado não é outro: estranhamento. Nosso estranhamento com a verdade - ou uma versão da verdade - pode ser tão dilacerante que o mais provável é um recuo decidido ao passado onde nada se sabia, justamente para se evitar a dor ou o esforço de pensar.
ResponderExcluirAndré Vidal, meu querido amigo.
ResponderExcluirPrimeiramente me desculpe pela demora no comentário, mas queria ler o texto mais vezes antes de falar sobre seu post.
Li os comentários do Fred e da Susanna e suas "explicações". Isso me deixou mais encantado ainda com seu texto! Lindo, poético e questionador. Me lembrei de duas frases:
Quem se questiona é incompleto. - Clarisse Lispecor
Pessoas burras são mais felizes. - Hilda Hilst (ACHO) rsrsrs
Parabéns!