quinta-feira, 29 de novembro de 2012

MOEDA AMBIVALENTE (A.V.)


ENTREABERTA (Moeda I - Cara)


Parado do lado de fora, ele observa pela porta entreaberta
e não vê o que ficou para trás.
Nem entende se ficara para trás
aquilo que não decidira abandonar.
A bem da verdade, permanecer parado ali
era uma dor que não sabia perder: ele ainda amava.
Talvez, imaginava ele, não amasse verdadeiramente;
talvez amasse a lembrança de lençóis desfeitos;
as louças deixadas na pia num Dia de Namorados;
amasse um certo cheiro inesquecível,
quando fechados os olhos,
fazia invadir sua memória de insuportáveis doces recordações.
Descalço, hesitava fortemente sair dali parado,
mas sabia que ventos fortes haveriam de empurrá-lo cedo ou tarde,
seja para dentro, seja para fora.
Nada mudava, mesmo que se entretivesse num canto melancólico qualquer.
Contudo, permanecer parado, olhando pela fresta de uma porta entreaberta,
sem pensar muito ou nem pensar, talvez,
fazia-o estranhamente reviver, não sem dor,
sem remorsos,
a desobrigada alegria que sempre tivera.
Ainda que mentisse para si, permanecia ali.
E parado ele observa pela porta entreaberta.



SOFREGUIDÃO DIMINUTA (Moeda II - Coroa)


“Que fazes parada neste galho sem folhas verdes?”
Queria saber da formiga gravosa. E é porque ela mantinha um olhar distante e perdido que fizera esta pergunta.
“Não vês, Natureza?”
“É a cigarra que tu criaste tão livre e tão alegre.”
“Se canta é porque ama.”
“Eu que me engano neste cotidiano imutável,
arrancando folhas destas árvores perfunctórias, a tal ponto de só repetir, miseravelmente,
gestos sociais e sem louvores algum.”
"Quis, no entanto, apenas amar, em lugar deste peito de formiga vazio de amores.”
É por isso, Natureza, que me tenhas como invejosa.”
"É que guardo neste frágil peito de formiga um lugar inabitável para o resto desta vida curta;
carrego-me, eu apenas, numa existência de passos ímpares.”
“Pior do que tal existência, é dar-me conta de quão faz-me falta estas cordas vocais dignamente sonoras.”
“Eu quero amar!”
“Não quero apenas notar no sombrio momento noturno a ausência dilacerante de um alguém qualquer.”
“Um dia, porém, subjugar-te-ei, Natureza. Acredito poder me envolver num casulo abandonado qualquer,
e dele sair quando for livre e alegre, tal qual cigarra.”
E no olhar de formiga brilhavam a esperança e a coragem. No olhar da cigarra, que de longe observava tudo, havia uma leve tristeza, porque ela invejava a formiga que não sabia o que era ter um canto solitário mesmo numa manhã de Primavera.


André Vidal

2 comentários:

  1. André, procurando a ligação entre os dois textos, atentei pra uma coisa: ambos tem personagens que estão invejando algo. No primeiro, o lado CARA, fala de uma pessoa que não consegue seguir em frente e "entrar" por uma porta, seja ela física ou metáfora. No COROA, a formiga observa, assim como o homem do primeiro, uma cigarra que vive de uma forma diferente da dela, não-automática. Isso me lembrou uma cena de um filme que tenho certeza que você vai adorar.

    Na cena a que me refiro (do filme WAKING LIFE), uma mulher desconhecida passa pelo personagem principal na rua, ansiosa por conhecê-lo, mas não o faz. Aí na segunda vez que se esbarram, ela resolve ir falar com ele e diz que não queria esperar que algo fizesse com que eles se conhecessem.

    "Eu não quero ser uma formiga.
    Passamos pela vida,
    esbarrando uns nos outros...
    sempre no piloto automático,
    como formigas...
    não sendo solicitados a fazer
    nada de verdadeiramente humano.

    "Pare". "Siga". "Ande aqui". "Dirija ali".
    Acões voltadas apenas à sobrevivência.
    Toda comunicação servindo para
    manter ativa a colônia de formigas...
    de um modo eficiente e civilizado.

    "O seu troco". "Papel ou plástico?"
    "Crédito ou débito?"
    "Aceita ketchup?"

    Não quero um canudo.
    Quero momentos humanos verdadeiros.
    Quero ver você.
    Quero que você me veja.
    Não quero abrir mão disso.
    Não quero ser uma formiga, entende?"

    Os dois lados da moeda seriam o PASSADO e o FUTURO??? No primeiro texto o personagem pensa no que passou e no segundo pensa no que ainda vai ser ou poderá ser no futuro. Seria isso?

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  2. Fred, em primeiro lugar obrigado pelo comentário. Bem, esses dois textos nasceram totalmente independentes. Eu conversava com Susana e disse a ela que eu criara dois textos, mas não sabia qual deles postar. Encaminhei para ela e pedi o conselho: postar o 1 ou o 2. Ela me respondeu que ambos são complementares e que eu deveria postar os dois. Esses dois textos foram feitos nessa semana; surgiram a partir de um sentimento comum que eu senti. Mas ele não chega a ser biográfico, não contemporaneamente falando, claro. Talvez um dia tenha sido assim, hoje, de certa forma, não é mais. O primeiro texto é, sim, um amor grandiloquente. Superior até à capacidade que se desenvolve ao longo da vida para senti-lo de forma racional e saudável. Muitas pessoas enfrentam isso: amam demasiadamente alguém até que se veem sozinhas e apenas com esse sentimento avassalador. O que fazer com todo esse amor? Queimar? Não há fórmula, é necessário tentar parar de alimentá-lo e esperar que se extinga com o tempo. Mas vez por outro, o sujeito há de olhar para o passado que não anda muito longe dele, muitas vezes, ao lado e manter esse olhar tacanho de quem não consegue só fechar a porta e ir embora, mas, por outro lado, a mantém aberta. Parece um fio estranho de esperança.
    No texto 2, é o oposto, é o outro lado disso tudo. É não amar. Lembra da música Socorro (se não me engano de Arnaldo Antunes, mas que gosto na voz de Gal Gosta)? Socorro eu não estou sentindo nada. Essa inanição perante tantos excessos de amor que vemos sendo tão fortemente professados na vida, essas tais declarações tão pungentes de amor e afetos entre estes seres que se amam tão eficientemente... que festa! Mesmo que seja uma veleidade, desejar estar no meio de tanta suposta alegria e afetação da alma, pq não é algo só do coração, é uma inveja tolerável e até mesmo óbvia para qualquer um.
    Os dois textos podem ser ligados numa linha temporal onde passado e futuro se encontram, mas não há dentro dele - do texto - essa afirmação, cabe ao leitor desejar ou não fazer isso. Se eu analisasse esses dois textos, sem ter sido eu o autor, diria que no segundo a personagem formiga pensa apenas em ser algo que nunca foi e quem sabe se um dia chegará a ser. A inveja está no segundo texto, pq se no primeiro há algo que sobra - é o sentimento Amor tão desejado no segundo - o segundo, por sua vez, carece e provoca uma aridez sentimental que artificializa a esperança, ou seja, na dúvida de que se vai chegar onde se quer, promete-se a si próprio uma vitória, que nada mais é que uma primeira marcha na ignição de qualquer veículo móvel - é só para andar mesmo.

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